A televisão está mudando tanto e tão depressa que já nem pode mais ser chamada de “televisão”. A piada é que não existe um nome para aquilo em que a antiga televisão está se tornando hoje, então qualquer nome aleatório é bom o bastante até que algum gênio da publicidade crie uma marca registrada de uso global.
Como brincadeira, meu amigo Ruy Flávio de Oliveira sugeriu que chamássemos a nova televisão de “Randolph Montgomery Culpepper, III” – ou “Randy”, para encurtar. Fica a sugestão para os criativos de uma boa agência publicitária cunhar um nome que “pegue”.
E por que vamos chamar a TV que surge hoje de “Randy” e não mais de “televisão”? Porque o conceito, as tecnologias, a audiência, os hábitos de consumo e principalmente os modelos econômicos da antiga televisão não vão mais se aplicar no novo meio que está surgindo hoje.
Desde o surgimento da Web no começo dos anos 1990, a indústria da televisão se sentiu numa posição privilegiada em relação aos outros meios de comunicação. Como a TV é a mídia mais rica há muitas décadas, seus proprietários se consideraram a salvo desse tsunami digital, observando de suas altas e seguras torres o maremoto que varreu todos os outros setores da comunicação.
Os donos de redes de TV e seus associados consideraram a expansão da internet como uma ameaça menor; mais um incômodo, como o crescimento da TV paga ou a popularização do videocassete. Um fenômeno que, na pior das hipóteses, causaria a queda de uns poucos pontos no faturamento multibilionário, e sequer abalaria o lucro igualmente bilionário. Na melhor das hipóteses (na qual a indústria apostou sem pestanejar), a internet seria mais uma fonte de faturamento, ampliando as ofertas tradicionais de empresas com setenta anos de mercado. Os executivos sonharam que as redes de TV valsariam graciosamente na transição para o digital, mantendo seus níveis de audiência ajustados por mercado, seus patrocinadores, seus preciosos dados demográficos. Mas nenhuma mídia do século 20 poderia resistir à onda digital, mesmo que se sentisse protegida na torre construída pela imensa audiência e pelos cofres cheios.
Lenta, mas inexoravelmente, no curso dos últimos quinze anos, aquela audiência duramente conquistada com sangue, suor e válvulas desde os anos 1940 começou a sofrer mutações muito preocupantes para as empresas. Uma rebelião nas fronteiras, uma revolta. Ou como humanos normais que se transformam em zumbis ou vice-versa.
Uma multidão global de olhos fiéis, que se adaptaram às grades (nada metafóricas) de programação dos canais, ao ponto de adotarem a TV como relógio despertador e cronômetro de suas vidas e da vida de seus filhos. Uma legião que a televisão herdou do rádio, legião conquistada por meio século com imagens de um cinema em casa, imagens cada vez melhores, mais definidas, coloridas, com som hi-fi. E aqui há duas “legiões” totalmente encantadas. Uma é composta de famílias de alguma classe média com algum nível educacional e com algum poder aquisitivo. E a outra é formada por anunciantes/agências/políticos que compreenderam e reconheceram a televisão como a Pedra Filosofal da era contemporânea: uma máquina eletrônica onipresente capaz de vender praticamente qualquer coisa para o maior número possível de pessoas ao redor do planeta. Poder, riqueza, dominação.
Como, como, como seria possível abalar, ou sequer arranhar, o poderio desse colosso das comunicações? Ricos e aparentemente protegidos da revolução digital, muitos empresários do setor consideraram apenas os cenários positivos para o futuro.
E talvez agora vejamos como até os gigantes se esfarelam. Se o tsunami varreu imediatamente os jogadores menores, como a mídia impressa ou o rádio, em tempo a TV começou a ser afetada pela “radiação” da era digital, tão letal quanto as ondas que demoliram as outras mídias. A internet foi mais insidiosa e mais perversa na corrosão do lucrativo feudo da televisão. Como uma bomba de nêutrons, a internet não teve efeito instantâneo sobre a instituição, mas transformou radicalmente o público da televisão.
Na era pré-internet, esse público já tinha dado sinais de rebelião, com a chegada da TV a cabo e do lançamento dos gravadores domésticos de vídeo. Nos dois casos, as grandes redes e sua rede de parceiros comerciais conseguiram contornar o problema, usando soluções criativas, políticas, comerciais, tecnológicas, jurídicas e até puramente criminosas. Esse padrão é muito frequente no setor de mídia, diga-se. Um meio de comunicação que se sente ameaçado por concorrentes novos tenta primeiro vencer pela inteligência criativa, e depois faz investidas cada vez mais agressivas em cada esfera de atuação do inimigo. Às vezes essa forma de ataque funciona, às vezes não. Mas agora a onda digital varreu tudo, inclusive as torres mais altas. Diferentemente dos outros meios de comunicação, a televisão ainda tem muito fôlego, então será uma extinção em câmera lenta.
Surge “Randy”, um novo meio a partir do antigo. É uma neo-televisão, muito maleável, muito plástica. Randy não é um bloco monolítico, nem estruturada como uma rede de emissoras afiliadas. Ao contrário, Randy é feito puramente de programação, e não de canais. Randy é uma nuvem de conteúdos televisuais (séries, filmes, documentários, eventos esportivos, etc.) que podem ser selecionados e montados de acordo com a vontade do consumidor — e não na forma de “pacotes” ou “combos” impostos. O fenômeno do “cord-cutting”, os cancelamentos de assinaturas de TV paga, é a maior preocupação atual das operadoras nos EUA.
Randy é Netflix (seu mais brilhante exemplo). Também é o serviço Amazon Fire. E mais todas as iniciativas de streaming e programas on-demand que as empresas tradicionais de TV estão lançando, desde a Globo até a HBO. É tudo on-demand, e agnóstico em termos de plataforma, sistema operacional e hardware. Randy não tem grade de horário, nem horários de qualquer tipo. Tem “binge-watching”, que é a possibilidade de ver uma temporada inteira de uma série inédita — uma heresia impensável para a velha TV.
Essa “morte anunciada” da televisão pode soar estranha para quem ouve dizer que vivemos uma nova Era Dourada da TV. Só que alguns críticos veem nessa era de ouro o canto de cisne da TV tradicional. Como a TV tem bolsos muito fundos, é possível que não seja o cisne a metáfora, mas a fênix que renasce das próprias cinzas. Mas isso vai depender da inteligência dos executivos do setor — que são tão antiquados, tão nativos do século passado como seus equivalentes na indústria fonográfica e nos estúdios de cinema.
Fonte:O Estado de S.Paulo -Blog O Estilete