Quando teria sido possível a apenas poucas pessoas —um jovem idealista, aliado a jornalistas — exporem ao mundo inteiro, simultaneamente, em questão de semanas, com tal riqueza de documentação, operação desta envergadura?
Demorou menos do que se imaginava, e o governo brasileiro já envereda por uma agenda política desvirtuada no trato do escândalo da espionagem americana.
Não me refiro à mais do que óbvia tática de desviar a atenção do público interno, das manifestações das ruas para um inimigo externo — uma espécie de Guerra das Malvinas à brasileira. Refiro-me a algo tão menos óbvio quanto mais preocupante: a possibilidade de utilização do episódio para avançar o acalentado projeto de “regular” a mídia. Para tanto nada seria mais apropriado do que utilizar a internet como cabeça de ponte — é aí que se veiculam, de forma livre e irrestrita, jornais, revistas, livros, filmes, e televisão, do mundo inteiro, de hoje, de ontem, e de séculos passados. Em essência, a mídia de hoje, em grande parte, se apoia na internet. Se começarem a “regular” por aí, o resto cai por efeito-dominó.
Assim é que nem bem avaliamos a gênese, nem a logística, de tão extensa rede de espionagem, e nosso governo já anunciou quatro frentes de ação: duas formais, e duas políticas. São as formais o pedido de esclarecimentos ao governo americano, e a investigação da possível participação de empresas brasileiras. São as políticas o aprimoramento da legislação para garantir o sigilo de dados na internet, e proposição à ONU de regulação internacional para maior segurança cibernética (leia-se, novamente, internet). E é nestas ações políticas que reside o desvirtuamento: sigilo e regulação não costumam ser indicativos de honestidade de propósitos.
Convém lembrar que a internet não criou a espionagem, que existe desde que o mundo é mundo. E, se observarmos com atenção, verificaremos que se a internet, por um lado, permitiu uma escala de espionagem sem precedentes, por outro, permitiu uma exposição desta rede de espionagem em escala, e velocidade, igualmente sem precedentes. Quando teria sido possível a apenas poucas pessoas — um jovem idealista, aliado a jornalistas — exporem ao mundo inteiro, simultaneamente, em questão de semanas, com tal riqueza de documentação, operação desta envergadura?
Então, qual o sentido das duas ações políticas? A primeira, que é o sigilo de dados na internet, não é uma questão de legislação, mas sim de tecnologia. Não por acaso empresas de segurança de dados encontram-se entre os gigantes do setor de informática; e hackers do bem se encontram entre os profissionais mais bem remunerados do mercado. A questão da captura de dados, como espionagem militar ou industrial, ou, por exemplo, fotos e vídeos comprometedores de reputações pessoais, devem ser tratados na esfera da lei penal, ainda que sob um novo capítulo denominado de crimes virtuais. Afinal, paparazzi e chantagistas de toda ordem, sempre existiram, e seus crimes são exatamente os mesmos do atual escândalo: espionar pessoas — apenas que as armas, em vez de computadores, eram fotos em papel, e filmes em película.
Quanto à segunda ação, que é a proposta de regulação internacional na ONU, qual o propósito? A guerra cibernética é uma realidade noticiada há tempos na mídia internacional, com ações de invasão dos computadores iranianos pelos EUA, acusações de invasões de computadores americanos pela China, e por aí afora. As potências militares já dispõem, em seus respectivos Pentágonos, de um departamento de guerra cibernética; com o governo americano indo ao ponto de declarar, oficialmente, que atos de guerra cibernética contra seu território, que acarretem danos materiais, equivalem a uma declaração de guerra, ensejando uma resposta militar ao invasor cibernético. E recorrer justamente à ONU, onde o espião tem poder de veto? Querem ação? Tirem as mãos da internet, e recorram à Corte Internacional de Justiça, em Haia, na Holanda. É ali que se julgam os malfeitos de países.
Silvio Figer é economista