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Da brasileiríssima arte de proibir

Culto à censura tem raízes profundas na história brasileira. Há quem a defenda como direito, ignorando que seu preço é um país imaturo
Publicado em 14/09/2013


Uma das melhores cenas do filme Carlota Joaquina, de Carla Camurati, é aquela em que um aparvalhado dom João VI – prestes a fugir de Portugal, rumo à colônia – mostra não saber lhufas sobre o Brasil. Mas está informado o bastante para promover a proibição do prelo, medida certeira na arte de manter os brasileiros na rédea curta. Ficção, diriam.


Registros históricos – como o expresso no excepcional livro A longa viagem da Biblioteca dos Reis, de Lilia Schwarcz – indicam que dom João mal sabia que no Brasil era mais fácil cruzar com o boitatá que com um impresso. Mais. A pesquisa mostra que a Imprensa Régia se iniciou meio que por acaso: quando da chegada da Família Real, havia uma prensa esquecida no convés de um navio. Serviu para os primeiros circulares do rei e para imprimir nossa primeira revista de fofocas, a Gazeta do Rio de Janeiro. Tristes trópicos.


O episódio não está de todo amarelado pelo passado, como diriam nossos otimistas dirigentes, arautos da nova era. Esse fato bem traduz as relações perigosas que o país nutre com a liberdade de expressão e reforça que nessas plagas sempre se usou a censura como forma de governo. Foi um uso tão frequente e sofisticado que, em determinado momento, deixou de ser necessária. Proibir já faz parte das nossas informações genéticas.


Os estudos de censura na formação do Brasil mereciam ser um ponto dos currículos escolares. Poucos conteúdos, afinal, nos definem com tamanha eficiência. Seria desejável saber em prova do semestre que um alvará de 1720 impedia a instalação de impressoras na colônia. Que a tirania portuguesa atrasou, e muito, a prática da leitura dos jornais. Dado isso, difícil resistir à tentação e não afirmar, mesmo sem o consolo de dados seguros, que ainda sofremos os efeitos do século 18. Independentemente da crise mundial dos impressos, nossos índices de leitura de notícias são humilhantes, o que compromete nosso debate público. Duro vai ser convencer os alunos de que isso é importante.


Interessa saber de 1720 tanto quanto interessa saber de uma tal Junta Diretora da Imprensa Régia, responsável por tratar livros importados com os rigores da alfândega. Nem drogas, hoje, sofreram tamanha repressão. Recado dado – a leitura era perigosa, uma contravenção, um mal do qual os pais deviam safar seus filhos. Os Autos da Devassa, que levaram Tiradentes à forca, referiam-se à prática do inconfidente de garimpar livros no Porto do Rio de Janeiro.


Mesmo com a abolição da censura, em 1821, a apreensão das prensas clandestinas e a perseguição inclemente aos que imprimiam jornais deixou seus estragos. Até porque de tempos em tempos o cerceamento à leitura se repetia, por longos períodos, transformando-se em uma cultura. Mesmo com o afrouxamento dos arreios, leva tempo, muito tempo, para que a prática da liberdade volte a se restabelecer como um ideal desejável.


Deve-se colocar essa questão na ponta do lápis. Para além das sabotagens praticadas por dom João VI e por dom Pedro I – que chegou a recolher o “basta” da população em 1831 –, essa arte tão brasileira se sofisticou, a níveis invejáveis. Teve versões belle époque durante a vida louca da Primeira República; modernas, na vida dura trazida pela ditadura Vargas; sofreu uma reatualização a partir de 1964, e em especial depois de 1968, num Brasil já com idade de pensar e agir como gente grande. Não foi nada pop. Até o Roberto Carlos foi contaminado.


Difícil refutar a tese de que a censura deixou estragos profundos. Pesquisas de opinião aqui e ali mostram que mesmo entre os brasileiros mais ilustrados e esclarecidos paira, como um fantasma, o desejo de impedir de circular, e coisa e tal. Censurar é confortável. Quer-se inibir a televisão, a escola, a imprensa, de modo a garantir, pela proibição, que nos privemos do trabalho de discutir e pactuar, entre outros verbos muito próprios do processo civilizatório, tal e qual descreve Norbert Elias. É crime contra a humanidade, mas chamam a isso de direito.


Um dos palpites a levantar é o de que por trás da cultura de censura se esconde um olhar complacente para com o público. Censura tem a ver com violência, mas também com paternalismo. É subestimar. Alguém do alto de sua prepotência – e de posse da faixa e coroa de censor – decide proteger as pessoas, entendendo que elas não têm capacidade de decidir. São pueris. Ora, isso tem outro nome: manipulação. O país que alimenta a censura só tende a se infantilizar, deixando para depois a hora de ser uma nação.


Fonte: Gazeta do Povo – Curitiba-Editorial

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