Brasília – O filme começa e na tela da tv ou do cinema surge a imagem de um casal entrando de mãos dadas e em silêncio em um hotel. Embora fundamental para a compreensão da história, a cena não pode ser acompanhada por milhões de brasileiros com algum tipo de deficiência visual porque não contém qualquer diálogo ou descrição sonora.
Para suprir essa lacuna que impede que parte da população acompanhe e entenda perfeitamente um filme, telenovela e quase todos os programas televisivos, as emissoras de TV já licenciadas para transmitir com o sinal digital terão que passar a apresentar pelo menos duas horas semanais de produções adaptadas para o público com alguma deficiência visual ou intelectual.
A obrigatoriedade entra em vigor no próximo dia 1º de julho, em cumprimento a uma portaria publicada pelo Ministério das Comunicações em 2006, estabelecendo que as empresas geradoras (as chamadas cabeças de rede) terão que veicular o mínimo exigido de programas com o recurso da audiodescrição. O prazo para que as emissoras se adaptem e cumpram a determinação já foi prorrogado duas vezes pelo próprio ministério, que, desta vez, garante que não haverá novos adiamentos.
A narração descrevendo os sons, elementos visuais e quaisquer informações necessárias para que um deficiente visual consiga compreender o que se passa na tela terá que estar disponível por meio da função SAP (do inglês Programa Secundário de Áudio). Além da audiodescrição, programas transmitidos em outros idiomas, como filmes estrangeiros, terão que ser integralmente adaptados, com a dublagem das conversas ou da voz do narrador. As legendas ocultas, que já são usadas para permitir que deficientes auditivos acompanhem os programas, continuarão sendo obrigatórias.
Segundo a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP), Lívia Maria Motta, uma das organizadoras do primeiro livro brasileiro sobre o tema (Audiodescrição: Transformando Imagens em Palavras, disponível gratuitamente no site www.vercompalavras.com.br), o recurso, que já é comum em vários países, vai garantir que uma parcela significativa da população compreenda integralmente um programa de TV. Além disso, a técnica também já vem sendo utilizada em espetáculos teatrais, cinemas, óperas, exposições e em eventos esportivos como as duas últimas Copas do Mundo de Futebol. No Brasil, um bom exemplo é o festival bienal de filmes sobre deficiência Assim Vivemos, que, desde 2003, só exibe produções que contem com o recurso adicional.
Após dois adiamentos do prazo para o início das transmissões, a diretora do Departamento de Acompanhamento e Avaliação de Serviços de Comunicação Eletrônica do ministério, Patrícia Brito de Ávila, garante que a data-limite será cumprida. Ainda assim, ela admite que, no primeiro momento, nem toda a população será beneficiada pela medida, já que o sinal digital ainda não está disponível em todas as cidades brasileiras.
“Infelizmente, as emissoras têm prazo até 2016 para migrar para a tecnologia digital. Então, por enquanto, só vai ser atendido quem já recebe em sua cidade o sinal de TV digital”, afirmou Patrícia à Agência Brasil, alegando que foi justamente a falta de condições tecnológicas por parte das emissoras que levou o ministério a prorrogar os prazos anteriores.
Pela portaria atualmente em vigor, o prazo de 12 meses para que as empresas ainda não licenciadas para transmitir com tecnologia digital passem a apresentar os programas adaptados só começa a ser contado a partir da expedição da nova licença de transmissão.
“Temos uma demanda grande das associações que representam pessoas com deficiência para que os prazos sejam cumpridos”, justificou-se Patrícia, “mas o ministério, como regulador, tem que conciliar a demanda dessas organizações que pedem que a exigência mínima [do tempo de programas adaptados] seja ampliada e os prazos cumpridos, com a das associações de rádio e TV que queriam negociar prazos maiores para que tivessem meios de cumprir a portaria”.
Diante da pressão das emissoras, a Portaria Ministerial n° 188, de março de 2010, não apenas estendeu os prazos anteriormente fixados na Portaria n° 310, de junho de 2006, como reduziu a carga mínima de programas audiodescritos que as tevês terão que apresentar. Pelo texto de 2006, a esta altura, os programas audiodescritos deveriam totalizar oito horas diárias, em vez das duas horas semanais estipuladas na última portaria. Somente depois de dois anos, a carga horária será ampliada para quatro horas semanais.
Segundo o diretor de Assuntos Legais da Associação Brasileira de Emissoras de Rádio e Televisão (Abert), Rodolfo Machado Moura, apesar de ainda terem muitas dúvidas sobre o recurso, as empresas de TV vão cumprir o prazo inicial. O problema, para ele, serão as próximas etapas, já que a meta do governo é que, em dez anos, todas as emissoras geradoras e retransmissoras de radiodifusão em sinal digital do Brasil exibam, no mínimo, 20 horas semanais de programas audiodescritos.
“Estamos trabalhando para cumprir o que a legislação determina. Agora, me parece que a portaria ministerial de 2006 foi produzida muito de supetão, sem o devido diálogo e sem os devidos esclarecimentos, pois não é possível, por exemplo, fazer isso [audiodescrição] com alguns tipos de programas”, comentou Moura.
O presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Pessoa Portadora de Deficiência (Conade), Moisés Bauer Luiz, que também preside a Organização Nacional de Cegos do Brasil, assegura que a portaria também não satisfez os movimentos sociais, tendo ficado aquém das expectativas de quem lutava pela aprovação da obrigatoriedade.
“A carga de programação a ser audiodescrita é muito pequena. Não estamos satisfeitos e queremos aumentá-la, mas isso ficará para outro momento. É um absurdo, mas cinco anos após a publicação da portaria original, vamos considerar uma vitória garantir a transmissão de ao menos duas horas semanais”, disse Luiz.
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