Comerciantes do Distrito Federal declararam guerra contra o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) local. Donos de bares, restaurantes e academias acusam a entidade responsável pela defesa dos direitos autorais de agir sem transparência e de aplicar reajuste abusivo. Após mudança na gerência do escritório do DF, o Ecad aumentou em até 1.000% o valor do boleto enviado todo mês a estabelecimentos onde se toca música. A entidade alega que os cálculos da cobrança estavam defasados e que a alta se explica por uma readequação prevista em regulamento.
Em audiência pública realizada esta semana na Câmara Legislativa, representantes dos setores de comércio e serviços cobraram explicações do Ecad sobre os critérios de cobrança e se queixaram do aumento das taxas. Empresários reclamam que, nos últimos dois meses, foram surpreendidos pelo reajuste. Com os novos valores, há quem ameace fechar as portas. Uma nova reunião está marcada para a próxima terça-feira, na sede do Ecad. A diretoria da entidade está disposta a analisar cada caso, mas adiantou que se os cálculos estiverem corretos, o boleto será mantido.
Depois de 15 anos pagando R$ 185, Erivelton de Aguiar, dono de academia no Setor O, em Ceilândia, se espantou quando recebeu o boleto do Ecad no valor de R$ 1,4 mil. Há dois meses, está inadimplente. “Não tenho condições de pagar. Esse valor inviabiliza meu negócio”, diz. A academia tem cerca de 400 alunos. A mensalidade, uma das mais baratas do DF, é de R$ 75. “Como assim aplicam esse aumento absurdo da noite para o dia, sem aviso prévio nem explicação alguma?”, questiona Aguiar.
Durante anos, vigorou um acordo que livrava cerca de 50 academias do DF de pagarem direitos autorais, uma vez que os empresários conseguiram convencer o Ecad de que a música era apenas um “instrumento de trabalho”. Há dois anos, esse acordo foi rompido, segundo Fábio Padilha, diretor da Associação Brasiliense de Academias (Acad). “Pagamos o retroativo e as mensalidades ficaram, em média, em R$ 200. Agora saltou para R$ 2 mil, R$ 3 mil. Para nós, isso é um golpe. O Ecad ficou doido. Botou um zero a mais no boleto, enviou para todo mundo e não quer abrir mão disso”, reclama.
Transparência
O representante do Ecad em Uberlândia (MG), Ênio Medeiros, conversou com o Correio em nome de Márcio do Val, que assumiu o escritório do DF em agosto do ano passado e não deu entrevista porque está de férias. Medeiros explicou que o cálculo das taxas é feito, em todo o país, com base na área sonorizada dos estabelecimentos. Após um trabalho de campo realizado em todo o DF, conta ele, fiscais constataram que muitos lugares — principalmente academias de ginástica — estavam com os cadastros desatualizados. “Não houve aumento, mas sim uma readequação para fazer justiça”, sustenta.
Medeiros diz que respeita a opinião dos empresários do DF, mas rejeita qualquer acusação de falta de clareza na cobrança. “Sabemos que os empresários já pagam uma série de impostos e até concordamos que o preço fique um pouco caro em alguns casos, mas temos um regulamento que precisa ser seguido. Falta de transparência, não há”, defende, antes de lembrar que a cobrança de direitos autorais pode ser feita em toda e qualquer situação em que se execute música publicamente, incluindo churrascos particulares em clubes e festas infantis.
A gente simplesmente desconhece os critérios usados pelo Ecad. Não somos contra a cobrança dos direitos autorais, mas há uma obscuridade no cálculo dessas taxas”
Danielle Moreira, presidenta da Associação Comercial do DF
Sabemos que os empresários já pagam uma série de impostos e até concordamos que o preço fique um pouco caro em alguns casos, mas temos um regulamento que precisa ser seguido. Falta de transparência, não há”
Ênio Medeiros, representante do Ecad em Uberlândia (MG)
A cobrança
» O Ecad cobra direitos autorais de toda pessoa física ou jurídica que execute, interprete, transmita ou retransmita obras musicais, literomusicais e fonogramas protegidos por lei.
» Onde a cobrança é feita: espetáculos e desfiles, audições públicas, concursos, teatros, cinemas, salões de baile ou concertos, boates, bares, clubes, lojas comerciais e industriais, escritórios particulares, órgãos públicos da administração direta ou indireta, estádios, circos, restaurantes, hotéis e motéis, meios de transporte de passageiros terrestre, marítimo, fluvial ou aéreo, alto-falantes.
» O pagamento é feito mensalmente ou esporadicamente, no caso de eventos. Os boletos são entregues pessoalmente ou chegam via Correios. Funcionários do Ecad ligam com frequência para cobrar o pagamento.
» O cálculo segue basicamente dois critérios: a área de sonorização ou a receita bruta do evento (quando há cobrança de ingresso). No site do Ecad (www.ecad.org.br), é possível simular o valor a ser pago, informando localidade e o segmento da atividade, além da área do espaço ou a receita bruta.
» No Distrito Federal, algumas localidades têm desconto de 10% (Guará, Cruzeiro, Setor de Indústria e Abastecimento, Park Way, Taguatinga e Gama), 20% (Ceilândia, Candagolândia, Núcleo Bandeirante e Sobradinho) ou 30% (Brazlândia, Planaltina, Samambaia e assentamentos).
Receita aumenta 12,6% em 2009
Depois de investir em tecnologia para aprimorar a arrecadação de direitos autorais, o Ecad comemorou, em 2009, um aumento de 12,6% no montante acumulado no país — o maior dos últimos seis anos. Entraram na conta da entidade R$ 374,3 milhões. Do total arrecadado, 75,5% são destinados para os artistas. O restante é repartido entre as associações que compõem o Ecad (7,5%) e os escritórios espalhados pelo Brasil (17%). No ano passado, o valor distribuído a compositores, intérpretes, músicos, editores e produtores fonográficos cresceu 17,06% em relação a 2008: R$ 318 milhões.
A presidenta da Associação Comercial do DF (ACDF), Danielle Moreira, afirma que a categoria está preocupada com a situação local. “A gente simplesmente desconhece os critérios usados pelo Ecad. Não somos contra a cobrança dos direitos autorias, mas há uma obscuridade no cálculo dessas taxas”, afirma ela, que considera o recente aumento “absurdo e unilateral”. Ela conta que desistiu de usar música na edição deste ano da Feira da Indústria, do Comércio, da Agropecuária, de Serviços e do Turismo (Feicom), porque o Ecad cobrou R$ 12 mil por dia.
Até televisão
Em um salão de beleza na Asa Sul, com 30 metros quadrados de área, a entidade cobrou direitos autorais porque a televisão do espaço estava ligada no dia da visita dos fiscais. A dona, que não quis ser identificada, comprometeu-se a desligar o aparelho, mas se recusou a pagar a taxa. No caso do Balaio Café, na Asa Norte, o Ecad não para de enviar boletos, mesmo com o restaurante interditado desde julho, por conta de problemas no alvará. “A arrecadação é arbitrária, injusta e aleatória. Quero saber o que estou pagando. E a cada mês chega um valor diferente”, comenta a proprietária, Juliana Lima.
O presidente do Sindicato de Bares, Hotéis, Restaurantes e Similares do DF (Sindobhar), Clayton Machado, diz que a cobrança do Ecad é “problema antigo e sério”. Ele sustenta que falta transparência no método adotado para definir os valores. “O processo é confuso. Nós somos os mantenedores da entidade. Temos o direito de saber, com detalhes, como são feitos os cálculos e para onde está indo o dinheiro”, cobra. “Ninguém é contra pagar. Só queremos entender o que estamos pagando”, acrescenta ele, que participou da audiência pública(1) esta semana.
O Ministério da Cultura traba-lha para mudar a Lei de Direitos Autorais (nº 9.610/98). O diretor de Direitos Intelectuais do MinC, Marcos Alves de Souza, defende transparência nos critérios adotados pelo Ecad. “A entidade tem o monopólio legal da cobrança. Se ela (a cobrança) for eventualmente abusiva, o que resta aos comerciantes? Alguns entram na Justiça, mas, via de regra, eles não têm tido muito sucesso nesse caminho. Justamente porque não há ilegalidade. Precisamos encontrar alternativas”, defende.
1 – Explicação
Em nota enviada ao Correio, o Ecad diz que “com a recente proposta do Ministério da Cultura (MinC) de mudança da lei autoral e às vésperas das eleições de 2010, não surpreende este tipo de evento (audiência pública)”. No texto, a entidade acrescenta: “É público e notório que o MinC e alguns deputados decidiram tomar partido e ficar ao lado de grandes investidores, diferente do Ecad que há anos vem lutando contra esses usuários defendendo os direitos de milhares de titulares de música”.
Para saber mais
Objetivo é arrecadar
O Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (ECAD) é uma sociedade civil, de natureza privada, instituída pela Lei Federal nº 5.988/73 e mantida pela atual Lei de Direitos Autorais nº 9.610/98. Administrado por 10 associações de música, tem como objetivo realizar a arrecadação e a distribuição de direitos autorais decorrentes da execução pública de músicas nacionais e estrangeiras. Com sede no Rio de Janeiro, conta com 25 unidades arrecadadoras, 700 funcionários, 60 advogados prestadores de serviço e 131 agências autônomas instaladas em todas as unidades da Federação. São enviados cerca de 72 mil boletos bancários por mês, em todo o país. No sistema, estão cadastrados 245 mil titulares diferentes. Há catalogadas 1,75 milhão de obras, além de 760 mil fonogramas.
Memória
STF limita a cobrança
Em 2002, o Superior Tribunal de Justiça (STJ) decidiu que o Ecad não pode exigir pagamento de direitos autorais quando a música for executada com alcance limitado, em estabelecimentos comerciais de pequeno porte e de instalações simples, sem que se possa obter benefícios financeiros por meio do som. O entendimento unânime da Quarta Turma beneficiou uma empresa de confecções em São Paulo. O relator do caso, ministro Aldir Passarinho Júnior, entendeu que o uso limitado da música em estabelecimentos de “diminuto porte e de instalações simples” não ofende os direitos autorais. Os comerciantes do DF esperam que essa decisão abra precedentes.
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