Uma família brasileira de sobrenome Silva, composta por pai, mãe e dois filhos menores de idade, pode estar por trás da segunda fraude a abalar o Escritório Central de Arrecadação e Distribuição (Ecad) em menos de uma semana.
De acordo com o Ecadnet, sistema de busca que o escritório responsável pelo recolhimento e pagamento dos direitos autorais de todos os músicos do país mantém na internet, Marco Aurelio da Silva, Laurinda Nascimento Vieira Silva, Marco Tales Vieira Silva e Lais Petra Vieira Silva seriam mais prolíferos do que Chico Buarque. Só Marco Aurelio, o patriarca da família, tem registradas em seu nome 629 obras, frente às 468 do irmão da ministra da Cultura, Ana de Hollanda.
Entre as composições que caem na conta dos Silva, todos cadastrados como artistas pela Sociedade Brasileira de Administração e Proteção dos Direitos Intelectuais (Socinpro), há vários homônimos de hits nacionais.
Entre eles: “Coisas que eu sei”, de Dudu Falcão — uma das cinco músicas mais tocadas em 2009 na voz de Danni Carlos —, “Tá perdoado”, de Arlindo Cruz, e “Chora me liga”, da dupla sertaneja João Bosco e Vinícius.
Os Silva não têm o costume de informar o intérprete de suas produções e parecem trabalhar nos mais diversos estilos musicais.
Na lei brasileira, não há nada que impeça que duas composições tenham o mesmo título.
Mesmo assim, o Ecad decidiu submeter toda a família a uma auditoria interna. O processo começou no ano passado.
Procurado pelo GLOBO, o Ecad informou, por sua assessoria de imprensa, que entre janeiro de 2010 e abril deste ano os Silva receberam R$ 1.700 pela reprodução de todas as suas supostas composições. A reportagem, porém, obteve documentos que comprovam que o ganho deles com apenas quatro canções entre janeiro de 2005 e dezembro de 2010 beira os R$ 4 mil. Só por “Festa no apê”, obra homônima ao sucesso do cantor Latino, os Silva, que detêm 75% dos direitos (o detentor dos outros 25%, também desconhecido, não pertence à família), embolsaram R$ 2.207 em cinco anos.
De acordo com o Ecad, “com a colaboração de produtores de shows, a família Silva relacionava obras da autoria deles entre os roteiros de shows pelo Brasil”.
— Se a falha no registro de obras permite que qualquer pessoa informe o compositor errado ao Ecad, então, existem muito mais famílias Silva do que se sabe — diz, irritado, Dudu Falcão.
Apesar da nota do Ecad, Jorge Costa, presidente da Socinpro, diz desconhecer qualquer investigação sobre os Silva.
Na última segunda-feira, O GLOBO denunciou o pagamento de R$ 127,8 mil ao falso compositor Milton Coitinho dos Santos.
Cadastrado no sistema do Ecad pela União Brasileira de Compositores (UBC) — outra associação de artistas —, ele listou como sendo suas várias trilhas de filmes brasileiros, algumas conhecidas por outros autores.
Após a denúncia, o Ecad congelou os pagamentos que lhe seriam feitos e informou que moveria um processo contra ele.
A reportagem, que já estava atrás dos Silva há dois meses, tentou localizar Coitinho ao longo da semana. Todos os dados que constam nas fichas cadastrais de ambos não levam a lugar algum. O e-mail que os Silva forneceram à Socinpro retorna com uma mensagem de erro. O telefone da família dá ocupado. Trata- se de um número em Belo Horizonte, mesma cidade onde Coitinho fez o seu registro. Já na ficha submetida por Coitinho à UBC, o número de identidade tem dois dígitos a mais do que o normal e o endereço e telefone “para correspondência” correspondem ao cassino Palms Place, em Las Vegas. Lá, ninguém nunca ouviu falar do brasileiro.
A data de nascimento de Coitinho também é falsa. Segundo um sistema de informações que reúne dados de segurança pública de todos os órgãos de fiscalização do Brasil, o CPF de Coitinho está ativo, mas atrelado a alguém que nasceu em 1964 e não em 1940, como registrou a UBC. Supõe-se que o fraudador tenha optado por envelhecer como forma de justificar a autoria de trilhas sonoras produzidas em sua infância.
O mesmo sistema de segurança revela que Coitinho reside ou residiu em Bagé, no Rio Grande do Sul, e trabalhou numa distribuidora de cervejas. Contatado pelo GLOBO, o departamento de recursos humanos da Cargnelutti & Cia. Ltda. disse que um homem com CPF idêntico ao do registrado na UBC prestou serviços à empresa entre 2001 e 2008.
Sem especificar o cargo, acrescentou que ele atuou em Santana do Livramento (RS).
Coitinho também foi dono de uma padaria em Bagé, mas o escritório de contabilidade que geria a sua conta diz que ele não aparece lá há anos. Os documentos relativos ao negócio já estão no arquivo morto da empresa.
Segundo consta, Coitinho recebia seus direitos autorais através da procuradora Bárbara de Mello Moreira, uma jovem que mora com a mãe e o irmão num condomínio no Pechincha, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro.
A procuração, datada de 28 de maio de 2010, era falsa.
— Esse documento é uma fraude — informa Bobbie G. Bell, tabelião do Notary on Wheels, cartório da Flórida cujo selo aparece estampado no documento.
— Além disso, o carimbo que está acima (na mesma página) é uma falsificação do selo da Secretaria de Estado Americano, que deveria reconhecer o carimbo do meu cartório.
Bárbara não respondeu aos pedidos de entrevista para esclarecer o destino final dos R$ 127,8 mil debitados em sua conta no banco Itaú. Seus vizinhos dão conta de que ela é universitária e não está trabalhando.
Fácil de registrar
Sexta-feira, na filial mineira da UBC, o correspondente do GLOBO em Belo Horizonte comprovou que é simples o caminho para se declarar autor de uma música.
Bastava preencher um formulário padrão, informando o nome da composição a ser cadastrada, e anexar um papel com a letra impressa, numa autodeclaração.
As atendentes daquela tarde acrescentaram ainda que a documentação poderia ser encaminhada ao escritório pelos Correios e que não seria indispensável a apresentação de uma cópia gravada da obra nem do encarte do suposto CD. A reportagem só não finalizou o registro de uma música homônima escolhida aleatoriamente porque não apresentou à associação de artistas um comprovante de residência.
A medida foi proposital.
— Nosso procedimento padrão, que segue as determinações da Convenção de Berna de 1886, valoriza o autor. Só se for provado o contrário (do registrado) é que se desconfia — defende Marisa Gandelman, diretora executiva da UBC. — Funciona assim no mundo todo. É como um livro. Ninguém desconfia da autoria dele.
Descontente com a repercussão do caso Coitinho, Marisa diz que vai investigar até o fim: — Eu quero punir, tirar do meio de nós os fraudadores, estejam eles dentro ou fora do sistema.
Não quero que essa história acabe em pizza.
De acordo com o Ecadnet, sistema de busca que o escritório responsável pelo recolhimento e pagamento dos direitos autorais de todos os músicos do país mantém na internet, Marco Aurelio da Silva, Laurinda Nascimento Vieira Silva, Marco Tales Vieira Silva e Lais Petra Vieira Silva seriam mais prolíferos do que Chico Buarque. Só Marco Aurelio, o patriarca da família, tem registradas em seu nome 629 obras, frente às 468 do irmão da ministra da Cultura, Ana de Hollanda.
Entre as composições que caem na conta dos Silva, todos cadastrados como artistas pela Sociedade Brasileira de Administração e Proteção dos Direitos Intelectuais (Socinpro), há vários homônimos de hits nacionais.
Entre eles: “Coisas que eu sei”, de Dudu Falcão — uma das cinco músicas mais tocadas em 2009 na voz de Danni Carlos —, “Tá perdoado”, de Arlindo Cruz, e “Chora me liga”, da dupla sertaneja João Bosco e Vinícius.
Os Silva não têm o costume de informar o intérprete de suas produções e parecem trabalhar nos mais diversos estilos musicais.
Na lei brasileira, não há nada que impeça que duas composições tenham o mesmo título.
Mesmo assim, o Ecad decidiu submeter toda a família a uma auditoria interna. O processo começou no ano passado.
Procurado pelo GLOBO, o Ecad informou, por sua assessoria de imprensa, que entre janeiro de 2010 e abril deste ano os Silva receberam R$ 1.700 pela reprodução de todas as suas supostas composições. A reportagem, porém, obteve documentos que comprovam que o ganho deles com apenas quatro canções entre janeiro de 2005 e dezembro de 2010 beira os R$ 4 mil. Só por “Festa no apê”, obra homônima ao sucesso do cantor Latino, os Silva, que detêm 75% dos direitos (o detentor dos outros 25%, também desconhecido, não pertence à família), embolsaram R$ 2.207 em cinco anos.
De acordo com o Ecad, “com a colaboração de produtores de shows, a família Silva relacionava obras da autoria deles entre os roteiros de shows pelo Brasil”.
— Se a falha no registro de obras permite que qualquer pessoa informe o compositor errado ao Ecad, então, existem muito mais famílias Silva do que se sabe — diz, irritado, Dudu Falcão.
Apesar da nota do Ecad, Jorge Costa, presidente da Socinpro, diz desconhecer qualquer investigação sobre os Silva.
Na última segunda-feira, O GLOBO denunciou o pagamento de R$ 127,8 mil ao falso compositor Milton Coitinho dos Santos.
Cadastrado no sistema do Ecad pela União Brasileira de Compositores (UBC) — outra associação de artistas —, ele listou como sendo suas várias trilhas de filmes brasileiros, algumas conhecidas por outros autores.
Após a denúncia, o Ecad congelou os pagamentos que lhe seriam feitos e informou que moveria um processo contra ele.
A reportagem, que já estava atrás dos Silva há dois meses, tentou localizar Coitinho ao longo da semana. Todos os dados que constam nas fichas cadastrais de ambos não levam a lugar algum. O e-mail que os Silva forneceram à Socinpro retorna com uma mensagem de erro. O telefone da família dá ocupado. Trata- se de um número em Belo Horizonte, mesma cidade onde Coitinho fez o seu registro. Já na ficha submetida por Coitinho à UBC, o número de identidade tem dois dígitos a mais do que o normal e o endereço e telefone “para correspondência” correspondem ao cassino Palms Place, em Las Vegas. Lá, ninguém nunca ouviu falar do brasileiro.
A data de nascimento de Coitinho também é falsa. Segundo um sistema de informações que reúne dados de segurança pública de todos os órgãos de fiscalização do Brasil, o CPF de Coitinho está ativo, mas atrelado a alguém que nasceu em 1964 e não em 1940, como registrou a UBC. Supõe-se que o fraudador tenha optado por envelhecer como forma de justificar a autoria de trilhas sonoras produzidas em sua infância.
O mesmo sistema de segurança revela que Coitinho reside ou residiu em Bagé, no Rio Grande do Sul, e trabalhou numa distribuidora de cervejas. Contatado pelo GLOBO, o departamento de recursos humanos da Cargnelutti & Cia. Ltda. disse que um homem com CPF idêntico ao do registrado na UBC prestou serviços à empresa entre 2001 e 2008.
Sem especificar o cargo, acrescentou que ele atuou em Santana do Livramento (RS).
Coitinho também foi dono de uma padaria em Bagé, mas o escritório de contabilidade que geria a sua conta diz que ele não aparece lá há anos. Os documentos relativos ao negócio já estão no arquivo morto da empresa.
Segundo consta, Coitinho recebia seus direitos autorais através da procuradora Bárbara de Mello Moreira, uma jovem que mora com a mãe e o irmão num condomínio no Pechincha, bairro da Zona Oeste do Rio de Janeiro.
A procuração, datada de 28 de maio de 2010, era falsa.
— Esse documento é uma fraude — informa Bobbie G. Bell, tabelião do Notary on Wheels, cartório da Flórida cujo selo aparece estampado no documento.
— Além disso, o carimbo que está acima (na mesma página) é uma falsificação do selo da Secretaria de Estado Americano, que deveria reconhecer o carimbo do meu cartório.
Bárbara não respondeu aos pedidos de entrevista para esclarecer o destino final dos R$ 127,8 mil debitados em sua conta no banco Itaú. Seus vizinhos dão conta de que ela é universitária e não está trabalhando.
Fácil de registrar
Sexta-feira, na filial mineira da UBC, o correspondente do GLOBO em Belo Horizonte comprovou que é simples o caminho para se declarar autor de uma música.
Bastava preencher um formulário padrão, informando o nome da composição a ser cadastrada, e anexar um papel com a letra impressa, numa autodeclaração.
As atendentes daquela tarde acrescentaram ainda que a documentação poderia ser encaminhada ao escritório pelos Correios e que não seria indispensável a apresentação de uma cópia gravada da obra nem do encarte do suposto CD. A reportagem só não finalizou o registro de uma música homônima escolhida aleatoriamente porque não apresentou à associação de artistas um comprovante de residência.
A medida foi proposital.
— Nosso procedimento padrão, que segue as determinações da Convenção de Berna de 1886, valoriza o autor. Só se for provado o contrário (do registrado) é que se desconfia — defende Marisa Gandelman, diretora executiva da UBC. — Funciona assim no mundo todo. É como um livro. Ninguém desconfia da autoria dele.
Descontente com a repercussão do caso Coitinho, Marisa diz que vai investigar até o fim: — Eu quero punir, tirar do meio de nós os fraudadores, estejam eles dentro ou fora do sistema.
Não quero que essa história acabe em pizza.
*O GLOBO: Reportagem: André Miranda, Catharina Wrede, Cristina Tardáguila e Thiago Herdy (RIO E BELO HORIZONTE)