Não existe nada de graça. A produção colaborativa alimenta a economia digital. O novo Eldorado está nas casas e nas mãos das pessoas
Marcelo Bechara
Quando leio o artigo 19 da Declaração dos Diretos do Homem de 1948, enxergo a internet como a mais magnífica tradução da livre circulação de ideias e opiniões que o texto pós-guerra de algum modo profetizou: “Toda pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, sem interferência, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e ideias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras.”
Se antes ouvir a opinião das pessoas era importante, hoje é o grande negócio. Num ambiente cada vez mais conectado, a renúncia à privacidade sustenta a grande nuvem que se alimenta de partículas de intimidade, composta não somente pela interação direta das pessoas com a rede, mas também pela automatização de suas vontades por meio de equipamentos totalmente conectados à rede mundial.
A internet é capaz de dar a cada cidadão o seu espaço, sem intermediários. Permite levar ao mundo o se que faz, o que se quer, o que se pensa. A rede já se apresenta como o segundo meio utilizado pelo brasileiro para acesso a informações, atrás somente da TV aberta, já que o aumento de aplicações para smartphones e tablets multiplica, em proporções geométricas, o volume de dados trafegados.
Em um novo cenário, a internet passa a interligar objetos do mundo real à rede, como eletrodomésticos, automóveis e roupas. Eis a “internet das coisas”, que, atuando em nome de seus usuários, vai igualmente se expressar por eles. Assim como o internauta manifesta sua opinião e suas atividades em uma rede social, ele também pode conectar sua geladeira, que controla sua dieta e informa os produtos que faltam. A nova realidade permite mostrar na rede os detalhes do cotidiano.
Já assistimos hoje à evolução dessa inserção para uma necessidade comparável à água e à energia. Tudo tende a se interligar à rede, diretamente ou indiretamente. Por isso, o conceito de internet das coisas parece já não ser suficiente para traduzir essa participação profunda da internet na rotina das pessoas. Caminhamos para uma “internet de tudo”, numa verdadeira automação dos desejos humanos via máquina.
No entanto, não existe nada de graça. A produção colaborativa alimenta a economia digital. O novo Eldorado está nas casas e nas mãos das pessoas. Fragmentos de nossa vida são pepitas no tesouro da informação, materializadas em fotos, opiniões, afazeres. Basta algumas pesquisas em sites de busca e nas principais redes sociais para se obter o perfil de uma pessoa. Ao contrário de antes, quando o valor da informação estava em seu segredo, hoje está justamente na revelação de cada internauta que, espontaneamente, expõe sua vida e seus pensamentos. Essas informações são comercializadas aos quilos e valem milhões.
Portanto, é preciso que se diga: internet tem dono e só chegou onde está graças à sua exploração comercial pelos detentores de infraestrutura e provedores de serviços. As receitas publicitárias de algumas empresas de internet já superam, no país, as de mídias tradicionais como a televisão. Diante disso, estas, que promovem a formação de opinião e visam a representar a sociedade que não tem meios para ser ouvida, buscam hoje extrair um novo modelo de atuação e de sobrevivência das transformações trazidas pela internet.
Além disso, criou-se uma nova linguagem marcada por pegadas indeléveis: para a internet, não há passado. Um site de busca volta no tempo e expõe, no presente e em milésimos de segundos, o que dissemos, fizemos e, não raro, do que nos arrependemos. O direito ao esquecimento é a mais nova fronteira da personalidade.
Diante dessa lógica, é fundamental promover o crescimento e o desenvolvimento da internet e garantir a livre troca de ideias com abominação de qualquer tipo de restrição ao acesso ou de censura de informações. Ao mesmo tempo, o Estado deve tomar as medidas para garantir que cidadãos e empresas tenham suas privacidades respeitadas se assim desejarem.
O mundo inteiro busca meios para assegurar todos esses direitos, o que inclui os debates acerca do princípio da neutralidade de rede. A recente decisão do Tribunal de Apelações do Distrito de Columbia, dos Estados Unidos, pela invalidade da regra definida pela Federal Communications Commission (FCC) acerca do citado princípio demonstra, ainda mais, a necessidade de conceitos firmes para o verdadeiro tratamento isonômico dos usuários na rede. A imediata aprovação do Marco Civil da Internet brasileira seria um belo e democrático exemplo.
Fonte: O Globo -Opinião