A Anatel está muito perto de ressuscitar as finadas outorgas de TVA (Serviço Especial de TV por Assinatura), que nada mais são do que concessões de canais de 6 MHz no espectro de UHF hoje distribuídos a cerca de 18 concessionárias, muitas hoje sob o controle de grupos religiosos de TV, mas todas com os prazos de validade já vencidos.
O argumento que está sendo construído no conselho diretor da Anatel para dar nova vida a um serviço (que teve seu fim previsto na Lei 12.485/2011) é que as antigas concessionárias ganharam esse direito de renovação com a Lei 13.879/2019, e que este serviço seria uma alternativa para ampliar a competição ao mercado de TV por assinatura. Segundo dados da própria Anatel, estas 18 autorizações, já vencidas, têm cerca de 350 usuários em todo o país.
O objeto original das concessões de TVA, distribuídas em 1989, era a transmissão de TV por assinatura, com um pequeno percentual do tempo permitida a transmissão dos sinais abertos. Com o tempo, esse percentual de transmissão aberta foi ampliado a 45% do tempo total, mas ainda assim nunca nenhuma destas concessões encontrou viabilidade comercial no mercado de TV paga. Desde então os detentores das outorgas buscam transformá-las em concessões 100% de TV aberta.
A interpretação jurídica que está sendo levantada no conselho da agência para dar nova sobrevida a estas outorgas (e ao direito de deixar estas empresas com um canal de UHF) é a possibilidade aberta pela Lei 13.879/2019, que prevê renovação sem limites das autorizações de uso do espectro. A lei, que estabelece o chamado Novo Modelo de Telecomunicações, mudou as regras de renovação da autorização de uso do espectro, que era de apenas um termo conforme a Lei Geral de Telecomunicações de 1997. Com base na regra anterior da LGT, as outorgas de TVA expirariam ao final de 30 anos (foram dois períodos de 15 anos de outorga). Mas com a nova lei elas ganharam o direito de novas renovações. Essa tese é respaldada pela Procuradoria Federal Especializada da Anatel.
Mas há outras inovações que a agência está trazendo para justificar esse renascimento das TVAs. Os principais argumentos a favor da possibilidade de que estas empresas tenham estas outorgas renovadas foram construídos pelo conselheiro Vicente Aquino, que relatou o voto-vista para alguns casos relacionados ao tema, como as licenças da TV O Dia (Rio de Janeiro), Trianon (Belo Horizonte) e MCI TV (São Paulo, Curitiba e Rio de Janeiro). Os votos de Aquino foram acompanhados até aqui por Carlos Baigorri.
Aquino parte, obviamente, da tese jurídica de que a Lei 13.879/2019 deu às empresas o direito de renovação do direito de uso do espectro, e que a Lei do SeAC, por ser anterior, não deve mais ser aplicada. A Lei do SeAC, de 2011, foi explícita ao dizer, no parágrafo 11 do seu artigo 37, que estas autorizações de uso do espectro não seriam renovadas, ainda que as concessões pudessem ser migradas para o SeAC. Mas isso mudou com o Novo Modelo, diz Aquino.
Mas a questão vai além do direito de ter a outorga renovada, já que para isso é preciso que a Anatel se paute pelo interesse público e pelo uso eficiente do espectro. Nesse sentido, segundo o conselheiro Vicente Aquino, o mercado de TV paga (Serviço de Acesso Condicionado) é o mais concentrado de todos os mercados regulados pela Anatel, e que portanto tirar empresas competidoras agravaria a concentração. O interesse público em manter as TVAs existindo seria o de dar mais opções ao consumidor, diz o conselheiro. Por fim, defende Vicente Aquino, a área técnica da Anatel errou ao dizer que as outorgadas de TVA fazem uso ineficiente do espectro porque desconsiderou que estas empresas operam em 45% do tempo transmitindo sinais de TV aberta “para milhares de brasileiros”, nas palavras do conselheiro.
Casuísmo
O problema é que estas outorgas no TVA, na prática, não concorrem e nunca concorreram no mercado de TV por assinatura. Segundo a própria Anatel, o número de assinantes desses sistemas não passa de algumas dezenas. No caso da TV Trianon, são 12 clientes. No caso da MCI, zero. Ou seja, são operações inviáveis como prestadoras de TV por assinatura. Também de acordo com a área técnica, estas empresas não têm nenhuma condição tecnológica de oferecer um produto competitivo de TV paga, porque os canais de 6 MHz em UHF comportariam, quando muito, quatro ou cinco sinais de TV multiplexados.
O relator destes casos, conselheiro Moisés Moreira, que já foi inclusive secretário de radiodifusão do Ministério das Comunicações, é contrário à renovação das outorgas. Segundo ele “não é possível a renovação, porque a Lei do SeAC foi muito clara ao segregar as TVAs. A intenção do legislador era evidente (no sentido de que o serviço deixaria de existir), ao contrário dos demais casos”.
Segundo Moreira, o argumento de que a cassação das outorgas prejudicaria a concorrência também é equivocado, já que nas regiões em que estão estas outorgas (nas principais capitais brasileiras) há demanda de novos radiodifusores que muitas vezes não são atendidas por inviabilidade técnica (falta de canais) e, ao retomar as frequências, poderiam ser feitas novas licitações de TV aberta, dando mais opções gratuitas aos usuários.
Ele ainda lembrou que o remédio que a agência vislumbrou para a questão da concentração do mercado de SeAC foi permitir a oferta desregulada de serviços pela Internet (OTTs). “Não vai ter nenhum impacto competitivo caso as outorgas de TVA sejam extintas”, avalia Moreira.
Por fim, Moisés Moreira diz que a motivação por trás dos pedidos de renovação é apenas dar tempo às detentoras de TVA para que aguardem uma solução legislativa, transformando as outorgas em concessões de TV aberta. Ele lembra que esse interesse foi expresso por uma das detentoras de outorga de TVA em seu pedido original, que alegava aguardar a votação do PL 2.611/2015, que prevê a conversão. “Não podemos regular pelo interesse particular das empresas”, disse Moreira.
No caso envolvendo a empresa TV O Dia, o pedido de conversão para SeAC foi aprovado, mas a renovação do direito de uso do espectro está sob vista do presidente da Anatel, Leonardo Euler. Os casos das empresas Trianon e MCI TV foram suspensos por pedido de vistas do conselheiro Emmanoel Campelo.
História
As concessões de TVA fazem parte dos primórdios da história do mercado de TV paga no Brasil. Elas foram criadas a partir do interesse de grupos de mídia, sobretudo do antigo Grupo Abril, que buscava entrar no mercado de TV. Foi criado então um modelo híbrido de serviço, em que parte do conteúdo seria transmitido de forma aberta e gratuita, mas a maior parte do tempo o serviço seria pago. Estas outorgas ocupam um canal de 6 MHZ no espectro de UHF (entre 470 MHz e 608 MHz e entre 614 MHz e 698 MHz). Mas rapidamente esse modelo se mostrou inviável com os surgimento das operadoras de MMDS (que operavam na faixa de 2,5 GHz e transmitiam 15 canais pagos) e das operadoras de TV a cabo e DTH.
O problema é que 25 concessões de TVA haviam sido distribuídas, sem licitação, para os principais grupos de mídia brasileiros nas principais capitais do país, e com o tempo se tornaram parte dos “ativos” desses grupos. Com o tempo, muitas das concessões acabaram sendo comercializadas ou arrendadas a grupos religiosos. Empresas como a Globo e RBS, por outro lado, optaram por devolver as concessões de TVA, dada a inviabilidade de exploração, de modo que hoje restam 18.
Quando a Lei do SeAC foi discutida no Congresso, entre 2007 e 2011, foram intensos os movimentos no sentido de transformar estas concessões em outorgas de TV aberta, mas a lei foi no sentido contrário e previu a extinção do serviço, com a retomada do espectro pela União. Depois disso, as concessões acabaram não sendo convertidas em outorgas de SeAC o direito de uso do espectro das outorgas venceu entre os anos de 2018 e 2019. Depois da Lei 13.879/2019, surgiu a nova tese da possibilidade de renovação da outorga daquelas que buscavam a renovação, reaquecendo as pressões sobre a Anatel.
Por enquanto, os casos em julgamento da MCI e Trianon têm dois fotos pela renovação (Carlos Baigorri e Vicente Aquino) e um contrário, do relator Moisés Moreira. Leonardo Euler não deixou seu voto consignado, de modo que a depender do voto de Emmanoel Campelo, o assunto será definido pelo conselheiro substituto (Raphael Garcia) ou pelo futuro conselheiro-presidente, ainda a ser indicado.
FONTE: AESP